Carriço continua no esquecimento

Juiz de Fora foi uma das primeiras cidades do Brasil a fazer exibições com aparelho de Lúmiere. Enquanto o Rio de Janeiro experimentou a novidade em 15 de julho de 1897, a cidade mineira aguardou apenas um mês e, daí por diante, sempre mostrou-se na vanguarda de muitos movimentos culturais. João Gonçalves Carriço foi um homem de vanguarda uma vez que procurou, não só através do cinema documental, levar novidades, lazer e aprendizado aos seus conterrâneos que, hoje, desconhe-cem seu pioneirismo.
Ao final da década de 20, Carriço montou uma sala de exibição voltada para os trabalhadores. O lema “filme que passa para um, passa para cem” explicava o objetivo da iniciativa, que era promover diversão barata e democrática. Nascia o Cine Theatro Popular, situado à Rua 15 de Novembro, hoje Avenida Getúlio Vargas, 890. Logo no primeiro dia de funcionamento, o espaço, que contava com 500 lugares, esgotou a lotação com o filme “A Inspiração Perdida”.
Não bastava mostrar os filmes. Carriço queria levar aos espectadores mais conhecimento. Sendo assim, o Popular editou um jornal onde o público encontrava informações literárias, principalmente de cunho humorístico. Com a idéia, Carriço entrou para a história mineira notabilizando-se como o pioneiro em jornais cinematográficos. Fora o jornal, outras estratégias contribuíram para que, em dois anos de funcionamento, “O amigo do povo” atraísse uma boa parcela da população juizforana. A mais curiosa era a estratégia adotada por Carriço para divulgar as atrações. Além dos tradicionais cartazes, ele usava carros alegóricos – na verdade, uma carroça puxada por dois cavalos, com tabuletas laterais e, às vezes, algum objeto associado ao nome do filme. Outra novidade era usada na comemoração das datas cristãs. Na Semana Santa, as pessoas iam ao Popular para assistir à vida de Jesus e, na tentativa de contextualizar tal data, Carriço enfeitava a sala com folhas verdes e cartazes que mostravam algumas passagens bíblicas. Já no natal, distribuía brindes e o povo era convidado a visitar o presépio e a assistir filmes gratuitamente. Todas essas peculiaridades fizeram com que o Cine Popular se tornasse, sem dúvida, o cinema preferido dos assalariados. João Carriço transformou um ideal particular em benefícios não só para Juiz de Fora, como para todo Estado. Foi ele quem instalou, pela primeira vez em Minas, o cinema falado. Persistente, levava seu aparelho de projeção a várias cidades e, a despeito do espanto e da confusão que a novidade provocava, a iniciativa possibilitou colecionar fatos pitorescos, como o que aconteceu em Matias Barbosa.” No filme que Carriço exibia tinha uma cena de tempestade. De repente, parte do público começou a abrir guarda-chuvas. Ele não entendeu nada, mas depois ficou sabendo que tudo aquilo era medo de pegar um resfriado”, conta Marta Sirimarco, autora da tese “Cinejornalismo e Populismo-Ciclo da Carriço Film em Juiz de Fora”. Por outro lado, muitos consideram a criação dos cinejornais a verdadeira contribuição do homem de ideais. Com o propósito de documentar a manifestação popular, notadamente os eventos de Juiz de Fora, os cinejornais eram como reportagens que podiam ser mostradas antes ou depois dos filmes. Um dos primeiros realizados pela Carriço Film focalizam Getúlio Vargas, que esteve na cidade sete vezes. A lente de Carriço registrou o maior comício do período, que aconteceu em 5 de setembro de 1950 na Praça do Riachuelo. Nem todos os fatos documentados por Carriço, entretanto, aconteceram em Juiz de Fora, e outras personalidades políticas, como Juscelino Kubitschek e Café Filho, destacaram-se nos cinejornais.
Marta Sirimarco salienta que, a respeito dos cinejornais, “as áreas de interesse cinematográfico eram esportes em geral, principalmente futebol, educação, notícias sobre cinema brasileiro e local, acontecimentos que envolviam assistência social à população e fatos significativos das localidades vizinhas”. Segundo ela, Carriço não gostava de abordar desastres, conflitos e colunismo social. De acordo com as fichas da filmateca da Prefeitura de Juiz de Fora, todas as manifestações populares da cidade foram registradas no período de atividades da Carriço Film, bem como todos os carnavais de 1934 até 1956. Os cinejornais, assim como algu-mas exibições, tiveram suas particularidades e nem só de entretenimento valia-se a programação. O último cinejornal, por exemplo, foi sobre o enterro de seu idealizador, com imagens feitas por seu filho. Os jornais da cidade não dedicaram matéria alguma sobre sua morte, salvo pequenas notas, e o Popular continuou funcionando sob a direção de Manoel Carricinho até 1966, quando o “amigo do povo” fechou as portas. O tratamento dado pela imprensa da época não foi diferente do que se verifica hoje. Poucas pessoas sabem quem foi Carriço. A única lembrança é o nome dado a sala situada à avenida Rio Branco, 2234.Com programação regular e mostras especiais, o Espaço João Gonçalves Carriço funciona de domingo a domingo, às 20h. Durante a semana, são exibidos filmes de cineastas famosos ou de períodos particulares do cinema nacional e internacional. Graças à iniciativa, os fascinados ou mesmo interessados pela Sétima Arte puderam assistir obras de Pedro Almodóvar ou conhecer um pouco mais sobre Neo-Realismo Italiano. Nos sábados e nos domingos são exibidos lançamentos de diversos estilos. Uma tentativa de aproximar o juizforano de sua história está sendo feita pela Divisão de Memória da Funalfa, responsável pelo MIS, Museu da Imagem e do Som, e pelo Acervo João Carriço. Quanto ao Acervo, o superintendente da Funalfa, José Alberto Pinho Neves, diz que pretende resgatar alguns cinejornais que estão na Cinemateca de São Paulo e na Líder Filmes, no Rio de Janeiro. Em outras palavras, iniciativas como essa são bem-vindas, mas ainda falta um longo percursso para que Carriço deixe de ser um ilustre desconhecido.
(Publicado no "Jornal de Estudo" da Facom-UFJF, 2001)

Comentários

Pajé Filmes disse…
Caro Franco,
Carriço foi mesmo um precursor. Tomei conhecimento da história dele lendo Pioneiros do Cinema em Minas Gerais, de Paulo Augusto Gomes, lançado neste mês aqui em BH pela Editora Crisálida. E me impressionei com a trajetória de Carriço em Juiz de Fora. Dá a impressão de que sua cidade parece ter mesmo uma vocação natural para o cinema.
Abraço
charles